Até um ou dois anos atrás, a Internet só estava ao alcance de um grupo muito restrito de usuários, pesquisadores de instituições acadêmicas, em geral comprometidas com informática. No momento, patrocinada por iniciativas governamentais, a Internet encontra-se em vias de atingir um público muito mais amplo, e seus advogados procuram apresentá-la como um serviço de comunicações destinado a atender qualquer cidadão.
O momento atual, de rápido crescimento institucional e definição dos domínios, promove inúmeras e recorrentes situações de impasse. A toda hora vê-se as diversas agências interessadas na rede - instituições provedoras, empresas interessadas em fazer seus negócios correrem através da rede, segmentos de usuários potenciais reivindicando acesso (e.g. universidades, ONGs, BBSs) - vindo a público negociar os limites e as responsabilidades respectivas. Os domínios e fronteiras institucionais ainda estão praticamente indefinidos, o perfil e os rumos do serviço ainda flexíveis, o que propicia o atual palco de disputa aberta entre os atores interessados. Um tal panorama dinâmico, em que os atores são obrigados reiteradamente a explicitar e negociar seus atributos, configura uma situação privilegiada para a pesquisa antropológica.
Para um antropólogo, o locus de pesquisa é precisamente o de uma fronteira de expansão e migração. O fenômeno é recente, explosivo mas ainda embrionário. Então, o que nos traz aqui, por que a "precipitação" em abordar um fenômeno que mal ameaça ocorrer, que sequer mostrou sua face inteiramente, a que poucos tem acesso ainda, sobre o qual rondam mais especulação e fantasia do que fato e empiria?
Uma primeira justificativa: o reconhecimento de que está em jogo algo de suma importância, um remanejameno decisivo dos processos sociais de gestão do conhecimento. Não apenas reconhecemos que é importante: as redes estão em implantação social, ainda muito indefinidas no seu caráter e contornos, seus desdobramentos e conseqüências estão em grande parte não decidos, em disputa. Há urgência de interferir na sua constituição, e não apenas constatar seus efeitos a posteriori. Toda reflexão crítica sobre a implantação das redes adquire hoje um caráter eminentemente político.
Talvez se deva justo a este reconhecimento antecipado da importância que as redes representam, das mudanças no perfil da sociedade que ameaçam ocorrer - e das quais quais a internet é o nome, o fetiche, o emblema mais visível - que se tende a assumir de saída posturas de julgamento extremadas: do cego entusiasmo ao pavor catastrófico.
Mas cabe-nos perguntar-nos, antes de tudo, de onde deriva este julgamento - tão facilmente aceito - de que o advento das redes eletrônicas representa uma mudança sócio-cultural assim tão profunda e significativa. Não deveríamos mais prudentemente duvidar de tais reivindicações exageradas a respeito de algo que mal se esboça, que pode muito bem vir a esgotar-se logo adiante - como testemunha a história de tantas outras prometidas revoluções tecnológicas cedo abortadas?
Não devemos também esquecer de que discursos utópicos muito semelhantes, profetizando transformações estruturais iminentes na sociedade, sempre acompanharam o surgimento de toda nova tecnologia de comunicação - como o demonstra convincentemente J. Carey, em especial a respeito da introdução do rádio e da TV [1].
Isto nos aproxima do assunto principal desta minha exposição. O que trago hoje para discussão são algumas indicações gerais sobre caracterísicas e apropriações destas novas tecnologias - e que são parte das reflexões que compõem o quadro da pesquisa que desenvolvo para doutoramento em Antropologia Social. Mais particularmente, trago algumas pistas para tentar responder a duas questões iniciais da minha inquirição:
Pois não se trata de uma tecnologia comum, simples método de fabricar e utilizar ferramentas para transformar o ambiente. Seria ingênuo naturalizá-la, neutralizar o seu alcance, desdenhando-a como meramente (mais uma inovação) técnica. Alguns autores chamaram a atenção para o fato de que toda sociedade humana, em meio ao seu patrimônio tecnológico e cultural, desenvolve necessariamente uma classe fundamental de tecnologias, das quais não podem prescindir: as tecnologias de conhecimento, ou tecnologias cognitivas [3]. Entre as técnicas do patrimônio, há sempre técnicas estritamente dedicadas à gestão do próprio patrimônio - das quais os gêneros maiores classicamente reconhecidos são os procedimentos de transmissão da memória oral e os da escrita.
Ao invés de voltadas para atuar diretamente sobre os objetos e o meio ambiente para transformá-los segundo um fim racional e utilitário, essa classe muito peculiar de tecnologias visa gerir (preservar, atualizar, transmitir) o conjunto do conhecimento objetivado de uma sociedade, a sua memória coletiva. São ferramentas cognitivas, que trazem as marcas mas também marcam o caráter de uma cultura. Se levarmos a sério este tipo de análise, tudo indica que as redes informáticas de comunicação representam um novo estrato tecnológico - que vem se superpor e alterar a oralidade e a escritura atualmente vigentes - na gestão do conhecimento social.
Mesmo atentando para os inúmeros problemas decorrentes de um esquema que se arrisca a retomar uma interpretação "evolucionista" da acumulação tecnológica, tais análises servem no mínimo para chamar atenção de que provavelmente não estamos diante de uma mera mise-en-scène marqueteira do capitalismo tardio, ao contrário, um processo de grande envergadura parece estar ao ponto de se consolidar, e é possível que nos encontremos de fato no limiar de uma reestruturação geral dos processos sociais de gestão cognitiva.
Perceber esta dimensão cognitiva fundamental da informática fornece-nos uma pista para compreender por que as formas de representação social da rede tendem a ser representações do todo social, como se a rede fosse "naturalmente" a metáfora da sociedade. É assim que a rede aparece para o usuário como se fosse uma máquina única, gigantesca, abrangendo toda a malha de instituições sociais, e reunindo o conjunto do legado comum, de toda a tradição objetivada. Representação rizomática, modo de articulação do heterogêneo e da pluralidade, garantidos por um suporte universal [e.g. o protocolo IP/TCP]. Onde as desigualdades inscrevem-se como dificuldades em conhecer o caminho, ou a necessidade do conhecimento de determinada senha de entrada, de domínio de certo jargão ou ferramentas de manipulação da parafernália técnica.
Sob a promessa, o convite a receber (host) e ancorar todas as demais instituições, exigindo-lhes um mínimo de adaptações, fornecendo-lhes novas bases técnicas de estabilização, devemos preocupar-nos em detectar como estas tecnologias acabam por penetrá-las e comprometê-las antes com seu modelo. Afinal, como a violência da implantação compulsória não se deixa notar, como as redes se impõe sem aparecer como uma despossessão ou domesticação forçada? Como vencem as resistências e as soluções alternativas? (Ainda mais, como pode mesmo aparecer como libertadora, redentora, desejável?) Usualmente se atribui o sucesso da rede frente ao seus usuários potenciais com a retórica do acréscimo de eficiência técnica na execução das mesmas tarefas. Gostaria de enfatizar que há um segundo componente talvez mais estratégico: o do interfaceamento metafórico.
Retornemos ao esquema à la Goody das grandes formas de tecnologias cognitivas: se na oralidade primária o conhecimento social encontrava-se encarnado em indivíduos, únicos portadores da tradição e responsáveis pela sua transmissão em vida a discípulos; se com a introdução da escrita o conhecimento social pôde objetivar-se parcialmente em suportes concretos, singulares, que deveriam ser preservados, atualizados, transmitidos; agora o suporte material está sendo virtualizado. Ao invés de objetos únicos e perecíveis, manuscritos, livros, exemplares concretos do texto transmitido, o único suporte material de que se necessita é da rede de comunicação, onde todo o conhecimento social circula sob forma digitalizada, disponível em princípio a qualquer usuários detentor de uma conexão.
Esta tecnologia pretende-se uma máquina universal, capaz de simular qualquer processo computável através do mesmo suporte. A idéia é que inclusive todos os processos sociais formalizáveis possam encontrar a sua reinscrição adequada no espaço eletrônico. Ao invés de impor-se como uma tecnologia que obrigaria ao abandono das velhas formas de interação social em prol de outra, ditada pelas imposições e restrições técnicas do novo meio, as redes informáticas pretendem-se folha em branco, plenamente moldável, capaz de assimilar qualquer outro modo cognitivo retraduzido na sua linguagem generosa.
Assistimos assim a uma grande operação de retranscrições de hábitos e instituições do mundo off-line para dentro do novo meio, a busca por metáforas orientadoras, organizadoras desse novo espaço. Todos reencontrariam seu lugar, seu rosto no seio da grande mãe.
Espaço é justo uma dessas metáforas orientadoras, talvez a mais basal, e hoje quase ubíqua: constrói-se a interface de tal modo que a rede é percebida pelo usuário como um espaço topográfico (ciberespaço, virtual), com lugares (sites) onde estão reunidos as atrações e serviços, e vias de conexão (a INTERNET seria o esboço de uma info-highway, info-bahn), "caminhos" pelos quais locomover-se entre os sítios. O processo pelo qual um usuário busca informações, serviços, parceiros sempre evoca o de um deslocamento, de um percurso - a navegação, o surfing - como se fosse o próprio sujeito que, mergulhado no circuito virtual, se movimentasse percorrendo a topografia da rede - ao invés de assistir estático aos pedaços do material circulante na rede desfilar à sua "janela". Período de interação na rede tende a ser vivido como uma viagem: incorporação do sujeito num outro mundo, com lógica própria, que duplica o convencional, e que permite franca circulação por todos os seus meandros sem esforço.
O que significa quando se diz que cada vez se desenvolvem interfaces mais "amigáveis" (user friendly)? Desenvolvem-se programas para mediar a interação do indivíduo com a máquina que imitam procedimentos a que este infivíduo já está familiarizado no mundo off-line - modos nada intuitivos, diga-se de passagem, mas aos quais foram treinados e educados por todo um longo e sofisticado processo de socialização. É na medida em que se consegue obter "cópias", modelos análogos de situações com que o usuário está habituado a interagir, que essas tecnologias vão construindo a sua hegemonia.
No limite, a rede se impõe com a promessa de reprodução de toda e qualquer instituição convencional já existente nos novos moldes informáticos.
É conhecida a história do nascimento modesto, e da imediata hipertrofia e consolidação originais dos serviços de email. As justificativas técnicas para a implantação da Bitnet, p. ex., apelava principalmente para o objetivo de permitir que cientistas espalhados pelos diversos centros acadêmicos do país pudessem alcançar por acesso remoto os grandes centros possuidores de computadores para processar, de modo a poderem computar os seus dados. Este o objetivo prioritário inicial da Bitnet: compartilhar o uso, o tempo de processamento de caros supercomputadores com toda a comunidade científica. Paralelamente, como um serviço acessório, secundário, implementou-se um sistema de correio eletrônico (email), de modo que os cientistas pudessem trocar mensagens entre si, facilitando o intercâmbio de informações entre os pesquisadores de diversas instituições. Em princípio, este era um serviço acessório, uma vez que visava complementar o uso dos supercomputadores remotos, permitindo passar instruções e comentários relativos ao primeiro serviço. Em pouco tempo, as estatísticas de tráfego de informações na rede demonstraram, para surpresa dos administradores da rede, que a maior parte do que transitava na rede era correio eletrônico. Os usuários imediatemante perceberam e lançaram mão do potencial comunicacional que a rede oferecia. A Bitnet passou a servir, antes de tudo, para formar uma comunidade científica, de discussão, de debate, de trabalho intelectual, mas também de política acadêmica, de articulação, de forjamento de alianças, e por que não, de pura diversão e bate-papo informal. Donde o espanto, a surpresa muitas vezes demonstrada pelos especialistas em informática com o extravasamento da tecnologia que forjaram além do seu campo próprio de competência.
Em resumo: mais do que facilitar acesso a informações estocadas num gigantesco repositório unificado, é preciso enfatizar o fato de que a Internet demonstra uma vocação de interação entre os seus usuários e instituições.
Não se trata de minimizar a capacidade que as redes possuem de disponibilizar e transmitir informações - o que elas propiciam numa escala e eficiência sem dúvida inusitados. Num certo nível, tudo o que circula na rede pode ser entendido estritamente como informação: pacotes de dígitos binários seqüenciais. Mas também se poderia argumentar justo o contrário, e mostrar que por trás de toda troca de dados há um laço de entendimento. O que se deve evitar é o reducionismo informacional: considerar que o que circula nas malhas de comunicação é apenas data, pacotes prontos para consumo, previamente estocados, aos quais o usuário apenas consulta como um receptor passivo, e cujos usos e motivações permanecem externos à rede propriamente dita.
Essa bifurcação entre tratamento de informação e mediação da comunicação, presente desde a gestação dessas tecnologias, retorna recorrentemente a cada novo recurso que a rede implementa. Polariza-se de forma nítida nos serviços básicos protocolares da Internet. Por exemplo, o serviço de FTP anônimo, enquanto um mecanismo para se poder enviar um arquivo binário de uma máquina para outra, é o paradigma do acesso a informações estocadas e disponíveis a consulta pública; por outro lado, o email, enquanto um mecanismo assíncrono de enviar mensagens de um a outro usuário, é acima de tudo um meio de comunicação, um ambiente que propicia a interação entre usuários. Numa geração acima de ferramentas da rede, o GOPHER é um recurso voltado para facilitar o acesso a bancos de informações estocadas, enquanto o MUD é um modelo de uso da rede destinado explicitamente à interação entre usuários. Hoje, as novas interfaces, como a www, tentam engloba ambos os tipos de serviço numa única ferramenta, mas a polaridade persiste focalmente - e a web vive ainda o "karma" de privilegiar o acesso a informação à interatividade: "brausear" a larga teia vem se tornando o correspondente computacional do "zapar" os canais de uma TV a cabo, o mouse substituindo singelamente o anacrônico controle remoto - como sugeriu certa feita Maria Ercília na sua coluna da FSP.
Lugar público de encontro entre todo e qualquer usuário, a rede oferece condições de formação de laços de uma sociabilidade específica, o que se tem denominado "comunidades virtuais": pessoas que se conhecem e se relacionam na e pela rede, submetidas ās suas regras, suas possibilidades e restrições.
Alguns estudos já analizaram a construção da identidade eletrônica em ambientes como p. ex. os newsgroups, os IRCs, ou os jogos de MUD [4]. Mas alguns desses mecanismos encontram-se em toda a rede, estão mesmo na raiz da noção de identidade eletrônica, pois são o único caminho pelo qual os indivíduos encontram ancoragem para agir no novo meio: tornam-se usuários. Encontramo-los bem definidos mesmo nos procedimentos de ingresso de um usuário na rede: há marcadores cerimoniais de entrada (login), de nomeação, de competências, de sigilo. Não são apenas burocracia de procedimentos técnicos, mas envolvem definição de identidade, determinam o modo como o sujeito ganha existência na rede, definem o seu espectro de ações possíveis. O usuário penetra no espaço virtual assumindo uma persona (identidade eletrônica) que pode movimentar-se, pronunciar-se e agir.
Há ruptura da passagem das atividades cotidianas para o modo específico de atuação do indivíduo na rede (passagem on-line/off-line). Obriga um deslocamento do self: o indivíduo se vê diante da tarefa de reinscrever a sua identidade num novo ambiente, de se auto-representar. Esta passagem é ritualizada de forma exemplar na primeira vez em que o indivíduo entra na rede, o primeiro login. Ele recebe uma conta numa máquina, para uso pessoal, identificada por um endereço único (não há dois usuários em toda a rede com o mesmo endereço). A conta compreende dois "nomes", um público, outro privado.
# conta |
endereço (userid) |
nome público |
Para entrar e participar desta confraria, há um ritual de admissão repetido a cada conexão, a apresentação da chave, a abertura da porta de entrada no virtual. A identidade do indivíduo é garantida não por um traço físico (foto, voz, impressão digital), mas por um signo exclusivamente "cognitivo", uma pequena informação "arbitrária" estocada estritamente na sua memória "orgânica" - a senha.
O sistema de autenticação por senha representa uma mudança significativa em relação ao ainda principal procedimento utilizado na autenticação cotidiana de documentos (recibos, cheques, documentos): a assinatura manuscrita. A habilidade de confeccionar uma assinatura (que distingue legalmente os alfabetizados) traz consigo marcas corporais do autor: é um movimento de coordenação automatizada, trai os vícios e estilo do sujeito, deixa detalhes de difícil falsificação. Não basta conhecer a assinatura de um cidadão para conseguir falsificá-la convincentemente. (É claro que existem os peritos em falsificação, que fazem o melhor que podem, através das mais diversas técnicas, das mais "intuitivas" ās mais cartesianas. Isso só prova que a assinatura não é inexpugnável, não que ela normalmente não funcione a contento).
Se a senha só é eficaz quando não revelada pelo dono a ninguém, a assinatura manuscrita pode e deve ser exibida, justo como prova de identidade. O procedimento usual de autenticação (e. g., de um cheque) é a comparação da "versão" apresentada com uma "original" - a carteira de identidade, o cadastro do banco, do cartório, enfim, documento chancelado pelo estado. Se ela não pode ser facilmente imitada isto é devido a peculiaridades e limitações inatas do sistema neuro-motor humano.
Ora, a assinatura eletrônica (como é chamada especialmente pelos estabelecimentos bancários, que encontraram nessa analogia o melhor método de fazer os clientes entenderem o novo sistema de autenticação) baseia-se no esquema exatamente inverso: ela não pode ser revelada, exibida a ninguém, sob pena de deixar de garantir a individualidade do dono da conta. Uma vez divulgada a senha, a sua conta (ou o acesso a ela, o que dá no mesmo) não mais lhe pertence exclusivamente.
A diferença fundamental é que a senha é constituída apenas de uma seqüência arbitrária de letras e/ou números, nenhum traço do corpo do indivíduo traindo a sua unicidade física. Uma vez sabida, presenciada, espionada, enfim, tornada pública, nada impede qualquer um de "falsificá-la". Ela se parece mais a uma chave (que pode ser roubada) do que a uma assinatura manuscrita (atada corporalmente à mão que a inventou). Mas não uma chave física, apenas uma informação. Não se falsifica senha: ou ela é exata ou inoperante. Falsifica-se ("tapeia-se") o procedimento dee login, o sistema de autenticação.
A senha é tanto mais eficaz e segura, quanto mais arbitrária em relação ao usuário. Não deve refletir, ser a retranscrição de nenhum dado relevante relacionado à biografia da pessoa, na real life. Um tal curto circuito - repetir um dado pessoal (data do aniversário, nome de batismo, endereço de residência) - anularia a garantia da identidade virtual: torna o segredo muito frágil aos ataques dos crackers, ās suas incursões de quebra de sigilo.
Ocorre assim uma espécie de paradoxo da userid: para garantir individualidade é preciso escolher nome o mais afastado possível de quaisquer outros signos de identificação do indivíduo, de qualquer outra referência consolidada da sua identidade - nome no sentido forte: longe de toda onomatopéia, sem qualquer relação de semelhança ou de contiguidade, sem ser símbolo ou índice do sujeito concreto, ele encerra a violência própria da nomeação, o ato de força com que o individualismo afirma a unicidade social de cada indivíduo.
Sustentado apenas por esse dispositivo, a identidade eletrônica do usuário em princípio não é segura: a única garantia de segurança provém de conseguir preservar sigiloso o que sempre está sob a ameaça de ser revelado. Há ainda poucas garantias de (1) autenticidade: de que só o usuário legítimo possa usar a sua conta, de que o sistema de login seja inexpugnável. Há meios de entrar na rede usando a conta de terceiros, "enganando" o sistema de login e fingindo ser o legítimo usuário. Há também poucas garantias de (2) privacidade: que as mensagens e as ações praticadas por um usuário são invioláveis, não podem ser acessadas ou monitoradas por terceiros não autorizados.
É essa insegurança, a falta de estabilidade das identidades eletrônicas, de garantia de autenticidade e privacidade nas transações, o que mais entrava a franca comercialização imediata da INTERNET: o nível de precariedade da privacidade só é suficiente para troca de mail, sociabilidade informal; já para realizar em massa transações envolvendo direitos e dinheiro não, ainda não é confiável. Por isso os serviços de homebanking (uso de serviços bancários através de telefone ou computador em rede) permaneceram fora da INTERNET até agora, como redes privadas sem pontes francas com a rede das redes [5] .
Em termos gerais, o bem circulante de maior valor na rede é, não a informação em geral, como se costuma afirmar, mas o segredo. A informação circula, sem dúvida, mas o que a qualifica, e a marca com o selo indelével do seu fundamento social, são os níveis de sigilo, de restrição de acesso. O maior valor está na informação rara, na que permite atravessar as barreiras, penetrar nos círculos restritos, e na que propicia criar novas barreiras, segregar, selecionar e fundar círculos restritos.
Alguns autores chegaram a afirmar que o virtual abole a distância e o espaço - tal como o tempo real aboliria a duração, o ritmo-em-atraso propício à reflexão e ao jogo do político. Em certo sentido, podemos contra-argumentar que é o operador segredo que possibilita delimitar novos contornos, fronteiras, regiões de exclusão no espaço virtual. Senão por que concebermos o funcionamento da rede como um espaço, qual o sentido desta metáfora? A sua pertinência deve estar na disputa e ocupação de áreas, na formação de fronteiras, nos movimentos de territorialização da matéria virtual. Grosso modo, dentro da rede, toda desigualdade baseia-se na distribuição diferencial de um código de acesso, no agenciamento de um segredo.
Vem se tornando moda, como um efeito de ressaca diante de tanta celebração redentora, desdenhar a chegada da internet como mera pirotecnia mercadológica da indústria envolvida. Agora, que todos já ouviram falar e passaram a querer "estar na rede", o cool é desdenhar a internet como algo banal, lugar onde só se perde tempo. Para os mais esnobes, ter email tornou-se o que há um ano era possuir um celular: hoje empolgar-se em público devido à internet, exaltar suas proezas de navegação e conectividade equivale grosso modo a atender ostensivamente uma chamada em pleno cinema.
Minha referência são trabalhos de Jack Goody, que as nomina "tecnologias intelectuais". Pierre Lévy voltou a apropriar-se recentemente do conceito. Esta discussão remete a uma vasta tradição que explora as distinções entre sociedades baseadas na oralidade primária e as que desenvolveram a escrita, da qual vejo-me na obrigação de citar ao menos Ong e Havelock.
A título de exemplo, eis uma bibliografia apenas "casual", reunida através de uma típica "surfada" na rede: